Surdos do Coração

Andava a passear na blogsfera e passei pelo Blog de Margarida Rebelo Pinto. Não resisto a partilhar convosco um texto que ela intitula de Surdos do Coração.

"Quando um coração se fecha, faz muito mais barulho do que uma porta. Quantas vezes já roubei esta frase ao António Lobo Antunes? Tenho quase a certeza de que ele não se importa, apesar de ser um lobo, apesar de sofrer de problemas de audição, apesar de ter um coração ao qual poucos chegam, e ainda bem.O coração de um escritor só a ele pertence. E os livros que escreve não são mais do que projecções dos seus medos, das suas fantasias ou dos seus disparates. Mas um escritor nunca pode ser surdo do coração, como o são tantos outros homens. Um engenheiro, um gestor, um arquitecto, pessoas que trabalham com números, com margens ou com vidro, aço e betão, podem ser surdos do coração. Um escritor, não. Porque nós trabalhamos com as emoções e com as ideias, e atrás de cada ideia haverá sempre e ainda uma emoção escondida. Os verbos pensar, sentir, sofrer e escrever misturam-se todos à mesma mesa e ao mesmo tempo enquanto existimos. E quando fazemos um raio x e nos arvoramos em leitores de almas, não estamos a fazer mais do que a descobrir a nossa, expô-la aos leitores, encontrando empatia naqueles que gostam da nossa obra e deixando que os nossos inimigos se riam nas costas das nossas fraquezas.
Levar com a porta na cara dói muito. Dói sempre, o dia inteiro, a todas as horas e a todos os minutos. Dói tanto que os segundos se podem tornar insuportáveis e os dias facilmente se transformam em epopeias, viagens trágico-marítimas. Dói de manhã, assim que regressamos do abençoado estado de inconsciência em que o sono nos guarda, quando olhamos para o lado e perguntamos: e agora? Dói quando olhamos para o espelho embaciado onde existem os fantasmas de frases de amor escritas com a ponta dos dedos. Dói quando nos lavamos, quando comemos, quando engolimos, quando respiramos, quando falamos, quando ouvimos, quando pensamos. Dói um bocadinho menos quando nos rimos, quando os amigos nos abraçam, quando a noite cai e os filhos nos protegem.Mas o que mais dói é saber que alguém que ainda amamos, por medo e por sofrimento, nos fechou o coração. O som é igual ao de mil tambores em fúria: não vale a pena falar, não vale a pena escrever, não vale a pena tentar chegar ao outro lado, saltar o muro, enviar emissários, içar bandeiras, fazer cimeiras, apanhar aviões e levar na mão o nosso coração como presente porque ele já não o quer. Quando o outro coração se fecha, deixa de ser nosso. E quando um homem fica surdo do coração, como é muito mais prático do que uma mulher, em vez de chorar e lamber as feridas, oferece-o a outra mulher.
Os homens têm uma existência infinitamente mais leve; confundem desejo com amor. As mulheres não têm a mesma sorte. Os homens sabem como encontrar soluções fáceis para todas as questões e muito poucos têm a coragem de Rilke, que sempre preferiu as soluções difíceis porque acreditava que é no difícil que tudo cabe. Mas não consta que fosse surdo, nem do coração nem do resto."

So um apontamento nao há lingua gestual possivel para estes surdos do coração...

Bj utopico
Dri

Comentários

Anónimo disse…
Desde a primeira vez que li um livro de Margarida Rebelo Pinto, fiquei encantada com a sua escrita. Profunda, simples, directa e adequada aos nossos dias e época, sem palavras caras que nos façam ir ao dicionário. Gosto bastante!

Dri, escolheste um belo texto. Realmente, faz muito mais barulho um coração a fechar do que uma porta, mas neste momento estamos as duas com corações bem abertos e felizes e isso é que importa!

Jokitas grandes

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