Artigo da semana: Armadura de Pascal

Diariamente folheio processos que versam sobre as relações interpessoais. Desde o inicio da minha actividade profissional, tentei sempre criar uma armadura face aos meus sentimentos. Nunca deixei, e espero continuar a não deixar-me abalar pelos casamentos desfeitos, pelos menores retirados a um dos pais ou mesmo pelas vicissitudes das relações entre seres humanos. Esta armadura fez-me aprender que , independentemente daquilo que julgamos, a felicidade deve ser a tónica máxima de um ser humano quer do ponto de vista individual quer do ponto de vista colectivo.

Conforme reza a história, a veste em causa é constituída por uma malha de metal resistente e pesado, reduzindo assim a mobilidade do seu usuário. Porém a referida malha de metal, com o passar dos dias e das diversas situações, vai perdendo argolas de aço e criando pequenas aberturas. Criando, assim, a necessidade de uma reestruturação eficaz e rotineira da armadura para enfrentar os teatros de guerra dos tribunais e porque não, também, das conservatórias do registo civil. E esta semana, por lapso, a argola de metal caiu. No instante que caiu, ecoou por todo o átrio do tribunal um som agudo e fino. A sua audição chegou mesmo a todos aqueles que se passeavam pela entrada daquele piso e fê-los estancar. Tentei recuperar a argola, mas foi tarde demais, pois aquela relação de 38 anos de vida em comum, que me levou ao Tribunal, teve, naquele dia, um término e como resultado deste, uma emoção expressiva naquele casal e em quem o rodeava. Apesar da manifestação da vontade de ambos, intrinsecamente, ser o fim da relação não resistiram a despedir-se com os olhos esbugalhados em água.

A abertura na malha da minha armadura proporcionou que, durante o caminho entre o Tribunal e o escritório, fosse a divagar sobre o final desta historia. Chegando mesmo a interrogar o colega de escritório, que me acompanhou na diligência: Será que esta reacção é o medo da solidão? Ou será o medo de enfrentar uma sociedade que, em certas faixas etárias , não entende o divórcio? Ou será que o fim desta história recordou a este casal os momentos de felicidade? A verdade é que, independentemente dos motivos que originaram a reacção emotiva do casal, a palavra casamento levou-nos a outras discussões. Invariavelmente trouxe à colação o assunto do ano de 2010: o casamento entre homossexuais.

Conforme mencionei anteriormente, partilho da opinião que a felicidade deve ser o objectivo primordial de um individuo quer seja no local de trabalho, no convívio com amigos ou mesmo numa relação homo ou heterossexual. Será fácil de entender que sou a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mesmo não defendendo o processo de deliberação desta realidade, pois a população deveria ter sido ouvida. Todavia a questão do casamento homossexual levou-nos até a biblioteca do escritório, pois existe um grupo na nossa sociedade civil que aceita esta realidade mas não aceita que se utilize a palavra casamento.

Assim, a sede de conhecimento fez-me procurar nos diversos manuais a etimologia da palavra em causa. De acordo com fontes literárias, a palavra casamento, do ponto de vista civil, constitui um vinculo estabelecido entre duas pessoas, mediante o reconhecimento governamental, religioso ou social pressupondo uma relação interpessoal entre as pessoas, embora seja encarado do ponto de vista da lei como um contrato. Contudo, de acordo com a tradição judaica-cristã, o casamento não é algo que foi construído à medida que os sujeitos foram construindo uma dimensão social, mas sim, que foi dado, nomeadamente, esta tese versa no versículo 24, capitulo II do livro dos Génesis do Antigo Testamento. De acordo com este texto, podemos retirar que a essência do casamento se constrói através de três pontos: 1) o homem deixa o seu pai e a sua mãe, 2) o homem é unido à sua esposa e 3) e assim tornam-se numa só carne. (Sobre este tema aconselho a leitura do estudo de um norte-americano de nome Allan D. Myatt intitulado “o que é o casamento?”).

Sem dúvida que quer do ponto de vista civil ou mesmo religioso, o casamento é um processo peculiar. Mesmo admitindo as diferentes perspectivas explanadas, entendo que a união entre seres do mesmo sexo seja denominada de casamento. Acima de tudo partilho desta opinião, pois vejo o casamento como um contrato entre dois seres humanos, mas isso não impede que a Igreja tenha a sua opinião e repudie esta realidade baseando-se nos escritos religiosos. Apesar de olhar para o casamento homossexual com os mesmos olhos com que olho para o casamento heterossexual, entendo que a sociedade seja constituída por perspectivas.

Enfim, independentemente, do tipo de casamento, a tónica entre os seres humanos deveria ser a felicidade e a capacidade de proporcionar aos que nos rodeiam também esse sentimento. A argola de aço daquele dia, devido ao seu tamanho, criou uma abertura larga na armadura, mas ao fim do dia a vontade de a fechar rapidamente urgia. Devemos viver com sentimentos mas não depender deles. Já dizia Pascal, filosofo francês do séc. XVII: “ O coração tem razões que a razão desconhece”

Comentários

Doroteia disse…
Muito bem! Eu leio tarde as coisas mas leio... As argolas caiem algumas vezes na nossa profissão porque somos humanos e é bom saber que também tu és humana ;)

Beijocas

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